A inelegibilidade tem sido pouco estudada. Os artigos de doutrina e as decisões judiciais, muito embora contenham análises técnicas interessantes, são, lamentavelmente, nada reflexivos, apesar da profusão de citações, que, como sempre, embargam a leitura, transitando entre a superfície e a repetição acrítica de velhas lições, cuja origem se desconhece. As pessoas, em geral, e os políticos e juristas, em particular, não parecem prestar atenção em sua importância para a vida e a garantia do Estado Democrático de Direito. A inelegibilidade é uma salvaguarda essencial da democracia e dos institutos e mecanismos que servem a definir e a organizar a política e seu funcionamento. Em verdade, ela leva às últimas consequências a proteção do regime constitucional. Neste artigo, pretendo definir a inelegibilidade e demonstrar quais são as consequências de seu reconhecimento ou condenação judicial, e a responsabilidade daqueles que violam os deveres decorrentes dessa declaração.
A Constituição Cidadã fala da inelegibilidade logo em seu início, no contexto de suas disposições mais importantes, que referem os “Direitos e Garantias Fundamentais”. Ela está no capítulo dos “Direitos Políticos”, logo em seguida da definição de “Nacionalidade” e do rol de “Direitos Sociais” e “Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”. Essas disposições, na tônica constitucional, só se consideram menos relevantes do que os “Princípios Fundamentais”, que abrem o texto constitucional, especificando o caráter essencial dos valores que definem nossa vida jurídico-política, entre eles a “Cidadania”.
Essa localização e essa importância do tema da inelegibilidade não são fruto do acaso. Ser elegível significa ter capacidade de representar o povo, no exercício das funções públicas que expressam a definição de Democracia. A Constituição o afirma: o poder pertence ao povo, que o exerce de modo direto (participação, conselhos, júris), semidireto (plebiscitos, referendos e leis de iniciativa popular) e indireto (por meio de representantes). Quando trata de democracia indireta, exige a presença de legitimidade na representação. Essa legitimidade decorre precisamente da eleição.
Representante legítimo é representante eleito. A elegibilidade é a capacidade de alguém, dotado de direitos políticos, apresentar-se, no espaço público, como candidato ao exercício de uma função conectada a um cargo eletivo. Ser elegível, portanto, é ser dotado da capacidade de estabelecer uma conexão fundamental na vida democrática, o liame da representação legítima. Essa conexão somente se torna concreta e efetiva após a eleição. Ser elegível é ser dotado de uma dignidade conferida apenas aos que cumprem os requisitos que ao povo interessou inserir na Constituição, como direitos políticos. Assim está posto no artigo 14 – que regula o exercício da “Cidadania”, ali chamada de “Soberania Popular”: o exercício do “sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”.
Se cidadania, soberania popular, capacidade política, eleição e condições de elegibilidade estão intimamente ligadas, isso significa que a inelegibilidade deve ser tratada como antípoda de todos esses valores, direitos e deveres constitucionais. Ser inelegível não significa apenas impossibilidade de uma pessoa ser eleita ou candidata, como a análise superficial e literal sugere.
A Constituição diz, antes de tudo, das condições objetivas de inelegibilidade, isto é, das pessoas que são inelegíveis por não possuírem alfabetização e por não se poderem alistar como eleitoras – porque estão prestando o serviço militar obrigatório, ou não completaram dezesseis anos de idade, ou não possuírem a nacionalidade brasileira. Em seguida, trata dos casos relativos de inelegibilidade, assim, por exemplo, da necessidade de desincompatibilização para a apresentação de candidatura a determinados cargos, a proibição de cônjuges e parentes de titulares de cargos públicos eletivos se apresentarem como candidatos.
Finalmente, no aspecto mais importante da inelegibilidade, a Constituição trata de defender o espaço público da política das pessoas consideradas indignas de o ocuparem. Vem o momento constitucional, portanto, de defender os valores e princípios que havia declarado, ao impedir que determinadas pessoas pretendam desvirtuar o Estado Democrático de Direito e se utilizarem do espaço e do tempo da política para fins ilícitos. Em termos simples, o desejo do povo, expresso na Constituição, é proibir não apenas que alguns sejam eleitos, mas sobretudo que se apresentem no universo da política e se utilizem da vida democrática para destruí-la. Algo assim como o oposto do antigo provérbio chinês, que falava da bondade da árvore, que daria sombra até aos que quereriam cortá-la. A Constituição não admite que a democracia permita que alguém ou um grupo se utilizem dela para a destruir. Por isso, prevê um conjunto de regras de proteção, que não podem ser objeto de debate ou opinião, sequer de liberdade de expressão. São estruturas de garantia do regime constitucional, do Estado Democrático de Direito.
Muito bem, esse momento do texto constitucional é o de determinar os casos de especiais de inelegibilidade, ‘’a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato, considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta’’. Essa inelegibilidade, que visa a defender o princípio do Estado Democrático de Direito, a cidadania e a eleição, é temporária e depende de uma declaração expressa do poder público, no exercício do poder de julgar. Não diz respeito somente a questões de capacidade para se candidatar ou eleger, mas a casos seriíssimos de indignidade política, como se observa nos fatos graves descritos no artigo 1º, inciso I, alíneas e a q, inclusive, da Lei Complementar 64/1990, por exemplo, ou no artigo 22, da mesma Lei, que fala de desrespeito à Constituição e à Lei, pelo “uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido politico” em eleição, ainda no artigo 73, da Lei 9504/1997, que proíbe os agentes públicos de agir para afetar a igualdade entre os que se candidatam numa eleição, e de ceder imóveis ou servidores públicos para trabalhar em benefício de algum candidato ou partido.
Para se tornar inelegível, como ocorreu, por duas vezes, com o ex-presidente da República Bolsonaro, a pessoa precisa ter cometido um ato grave, que tenha buscado desnaturar a essência constitucional da democracia.
Observando o comportamento do ex-presidente, porém, parece não se ter alterado após as duas condenações pelo Tribunal Superior Eleitoral. Continuou a despachar em escritório de partido político – local, aliás, em que seu passaporte foi apreendido, em decorrência de medida cautelar restritiva de direitos, estabelecida em processo de investigação pelo cometimento de “Crimes contra o Estado Democrático de Direito” -, a opinar em relação a eleições municipais, sugerindo ou indicando candidatos e vetando apoio a outros, mesmo ocupando o espaço público para se manifestar sobre a política eleitoral e partidária. Recentemente, aliás, gravou vídeo, convocando a ato, em São Paulo, para falar de política, defender-se de acusações e apresentar seu ideário político, salientando que a presença do público seria o aspecto mais importante em tal comício. Mais preocupante é o fato de o ex-presidente vir recebendo de autoridades e servidores públicos civis e militares homenagens mesmo após as condenações que o levaram à condição de inelegibilidade. Algumas autoridades, aliás, de poder executivo e legislativo, teriam confirmado presença ao evento político, realizado em ano eleitoral. Quer dizer, a condenação parece não ter sortido efeito algum, relativamente a seu próprio objeto e à finalidade da Constituição e das Leis.
A presença de tamanha disparidade entre a importância da inelegibilidade e a desconsideração que lhe é devotada pelo condenado e por membros da sociedade política, pode indicar uma disfunção de nosso sistema político, claro. Isso indica a necessidade de correção desse sério problema, e não afasta a necessidade de readequação de comportamentos, por meio da atuação firme e decisiva da lei e das penas que prevê.
É preciso, antes de tudo dizer que, ao contrário da interpretação distraída corrente, a declaração ou condenação de inelegibilidade estabelece que a pessoa fica proibida não apenas de se eleger ou de se apresentar como candidata, mas, sobretudo, de exercer os atos típicos da vida político-eleitoral e de permanecer no espaço público ou político, com a intenção ou pretensão de influenciar a escolha de partidos e, sobretudo, de eleitores e eleitoras, e os destinos políticos locais, regionais ou nacionais.
Essa interpretação que chamo de distraída é fruto da concepção arcaica do direito e da política que ainda vigora no Brasil e, em geral, nos países que preservam a mentalidade colonial. Aqui e ali, o jurista e o judiciário típicos ou tradicionais pensam no direito e na política como oligopólio e oligarquia (atributo exclusivo de poucos) e como excludentes da maioria, quer dizer, do povo. Os direitos e garantias dessa antipolítica servem a preservar essa propriedade e esse poder de poucos, visando a deixar o povo fora do espaço público. Assim, ao pretenderem fazer uma distinção entre os direitos políticos ativos e passivos, que é ilusória ao ponto de simular que o voto seria o lado ativo e o mandato político o passivo, numa inversão enganadora da realidade e da prática corriqueira. Nesse caso, o discurso que se pretende jurídico passa a se distanciar da experiência que se pretende política. Na verdade, essa experiência é antipolítica e aquele discurso, antijurídico. Negam direitos e deveres e desfazem a titularidade do poder, expropriando-o das mãos do povo e alocando-o na esfera de atividade de alguns.
Os poucos textos e as poucas decisões que tocam no tema da inelegibilidade nem se preocupam em comentar esse problema, quanto mais em desfazer essa ideologia tosca. Fazem, isso sim, reafirmá-la, seja pelo silêncio, seja pela repetição. Uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral, dada há vinte anos, por exemplo, fala do impedimento temporário da “capacidade passiva eleitoral do cidadão”, que consistiria na “restrição de ser votado”. Ou seja, chama o velho coronel da política de cidadão e lhe impõe a falsa restrição de ser votado, deixando-o livre para impor sua dominação sobre o povo, ao permanecer influenciando, coagindo e corrompendo o ambiente político.
É uma visão torta doutrinária e jurisprudencial, que apaga o que realmente ocorre no cotidiano da história política brasileira. A inelegibilidade deixa de ser uma punição, pela exclusão do mundo político, para se tornar um incentivo à fraude e mau exemplo para as gerações.
Ao afirmar que se trata de simples impossibilidade de ser eleito, deixando aquele que foi considerado indigno para a política circular com desfaçatez pelo ambiente público – que, hoje, inclui as redes sociais, agravando ainda mais as consequências dessa interpretação lamentável e irresponsável – prejudica-se a democracia não apenas pelo mau exemplo, mas igualmente por retirar oportunidade de presença e participação daqueles que possuem capacidade de atuar politicamente do ponto de vista constitucional. Ou seja, desaparece o dever de construção de igualdade de oportunidades, essência do sistema representativo, como definido na Constituição, e nas Lei de Inelegibilidade e Eleitoral. A Corte Interamericana de Direitos Humanos já concluiu que os direitos políticos, sendo essenciais à construção democrática, exigem proteção efetiva, precisamente para que assegurem a cidadãos e cidadãs igual oportunidade de participação efetiva na política.
Mudar a cultura jurídica e transformar o judiciário seriam conclusões mais ou menos óbvias do presente artigo. Gostaria, porém, de acrescentar dois temas muito atuais, no momento em que vivemos, no Brasil e no Mundo, ameaças concretas à democracia e à justiça – à política e ao direito, portanto.
Falo do caso do ex-presidente, mas quero deixar claro que essas conclusões se aplicam a todos os casos.
A insistência de alguém destituído de elegibilidade – desapossado de sua capacidade política – de transitar no espaço público para fazer sua antipolítica, manejar o machado que decepa o tronco e a estrutura do regime constitucional, é ilegal e configura atentado grave à ordem pública constitucional, tornando-o sujeito à decretação de sanções que restrinjam seus direitos, inclusive a prisão cautelar, por atentado contra a ordem publica constitucional, se não em decorrência das investigações de que já é objeto, igualmente porque incita contra as instituições, mormente contra um poder constituído como o Judiciário, e contra o próprio Estado Democrático de Direito, atos antijurídicos em decorrência dos quais pode ser processado.
Quanto aos que são autores e autoras de homenagens e que desejam participar da infringência à ordem pública constitucional e atentado contra o Estado Democrático de Direito, é importante também lembrar que existem deveres constitucionais que impõem comportamento diverso, assim como salvaguardas constitucionais que implicam na representação e em processos pelo cometimento de crimes de responsabilidade, assim como em procedimentos que podem levar ao mesmo destino da inelegibilidade.
É hora de levar a inelegibilidade a sério porque é tempo de defender, com todos os instrumentos constitucionais e com firme e constante vontade política, a democracia.